21-12-2006 Nouackchot > Tambacounda
São 6 horas da manhã de Quinta-Feira dia 21 de Dezembro de 2006. Toca o despertador numa das tendas do terraço do Auberge Sahara. Apesar da hora tardia a que nos deitamos, não custa levantar; a ansiedade de dobrar mais uma fronteira sobrepõe-se ao cansaço. Bebe-se um resto do chá frio que sobrou da ceia de ontem, faz-se o pagamento e fazemos-nos à estrada.
Antes de seguir viagem é preciso abastecer o depósito. Dirigimos-nos às bombas mais próximas, que teoricamente funcionam 24/24. Chegamos, esperamos e nada. Alguém nos alerta que é preciso ir acordar o homem que está a dormir lá numa casa. Lá vamos nos, bater à porta. Passado um bocado o homem vem, com o tapete na mão, muito calmamente e põem-se a fazer as suas orações. Mesmo depois de terminadas as orações, parece pouco interessado em vender-nos uns litros de essência, por isso decidimos ir bater a outra porta.
Partimos para umas bombas mais à frente e aqui, não é preciso acordar ninguém. Os gasolineiros dormem ali ao lado das bombas embrulhados nuns cobertores. Atendem-nos prontamente, tentam enganar-nos nos trocos, mas tudo se resolve.
O francês do outro carro que nos acompanha pede indicações para sair da cidade em direcção a Rosso. Segundo o meu GPS seria cortar à esquerda na rotunda, mas o jovem diz que é à direita. Tudo bem, vamos então à direita! E até íamos bem, mas não demos com o cruzamento e enganámos-nos. Pelo caminho, com o nascer do sol ao fundo, um veículo semelhante a um automóvel, transportava perto de uma tonelada de peixe, uns no tejadilho, outros nos lugares dos passageiros, e outros ainda no porta-bagagens, com os rabos e as cabeças penderem para fora.
Rendemo-nos então às maravilhas da electrónica e decidimos seguir o GPS. Mas mesmo assim enganámos-nos de novo! Viramos no cruzamento errado e eis que estamos no caos do transito de Nouakchott! A cidade está a acordar, e o código da estrada é coisa de que esta gente nunca ouviu falar. Numas ruas conduz-se pela esquerda, noutras pela direita e em algumas pelo centro.
Apenas é preciso respeitar uma regra: os burros têm prioridade! E são ás centenas. Veículos de tracção animal, com lustrosos motores, alguns de grande cilindrada (3 burros) aceleram pelas ruas da capital. Para eles não há STOP’s nem prioridades! Os carros é que têm travões, as carroças não!
Entretanto o Sol já vai alto e encontramos finalmente a estrada que nos levará a Rosso. Pelo caminho burros e camelos “abastecem” nas ervas que crescem nas infindáveis planícies que eu pensava serem apenas de areia…
Por volta das 11 da manhã chegámos a Rosso, Mauritânia. Enquanto esperamos para passar o portão que dá acesso à zona de embarque no ferry para o Senegal juntam-se à nossa volta miúdos que pedem “cadeau”, jovens que perguntam de onde nós vimos, …
“Ah, Portugal, Figo, Deco, Pauleta, …” Todos parecem conhecer melhor do que eu a selecção nacional de futebol.
Passado algum tempo passamos o portão para a zona de embarque. Começam aqui as negociações. Ao contrário dos policias da fronteira com Marrocos que nos cobraram apenas os 20€ pelo visto de entrada, estes aqui vêm em nós “máquinas de fazer dinheiro”. Pedem quantias absurdas, 100€ por cada carro (o nosso e o do francês que nos acompanha), para o bilhete do ferry e para as formalidades aduaneiras de saída. Após algumas negociações, ameaças de voltarmos para trás e irmos pela barragem, etc, o preço fixa-se nos 40€ cada carro.
Subimos a bordo!
Depois de centenas, quase milhares de quilómetros sem ver um rio, estamos a atravessar um rio, que mais que uma fronteira entre dois países é uma fronteira entre dois mundos, o lado árabe do deserto do Sahara a norte e a África Negra a Sul. A sensação é de estar a chegar ao destino. A partir daqui já não há mais noites frias. Pela primeira vez, sente-se verdadeiro calor Africano: húmido.
A travessia é rápida. Fico feliz por termos passado aqui e não na barragem. Esta sim é a verdadeira fronteira. Fazer a travessia de barco não é a mesma coisa que passar sobre uma barragem.
Desembarcamos, e agora sim é o momento da verdade!
Ao desembarcarmos no Senegal somos orientados até ao local onde devemos parar a viatura e dirigimo-nos com os passaportes à casa onde será carimbado o visto de entrada. O processo é um pouco demorado devido à muita gente que se junta ao mesmo tempo vinda do mesmo ferry.
A espera prolonga-se… dá tempo para aparecer alguém que nos lava os vidros do carro, ficando ainda mais sujos do que estavam, e lá somos levados a dar-lhe uma nota de 1000CFA… o Raul, apesar de todos os avisos, não resiste e tira umas fotografias ao rio e ao ferry! Os ânimos exaltam-se um pouco. Alguém diz: “Não pode tirar fotografias!”, “Vamos leva-lo à policia!”, … mas uma nota de 5€ acalma-os. Ainda assim, ficaram estas imagens:
Entretanto, são-nos pedidos penso que 1000CFA por cada cabeça (se a memória não me falha), o carimbo de entrada é batido no passaporte e estes são-nos entregues.
Falta agora o mais difícil, a parte do carro. Vamos ao edifício das duanas, e estranhamente, e somos levados a uma janela nas traseiras do edifício, onde entregamos o livrete do carro, a carta de condução e o passaporte do proprietário. Em alguns minutos voltamos a ter nas mãos os documentos e uma folha de autorização temporária de circulação. No passaporte vem registada a entrada do veículo, com o n.º de chassis, etc.
Mesmo não querendo deitar foguetes antes de tempo, dou saltos de alegria, sem tirar os pés do chão. Aparentemente a tão mal afamada fronteira do Senegal estava resolvida, e era a mais fácil e mais barata até ao momento. Mal imaginava eu o que ainda estava para vir.
Entrámos no carro e dirigimos-nos ao portão de saída. Aí, um suposto porteiro mais os amigos conseguem-nos extorquir 120€, isto após longas negociações, pois o valor inicial era de 450€. Garantem-nos que daqui para a frente não teremos mais problemas.
Desta vez já não deitei foguetes. Será que já tínhamos passado tudo, ou ainda ia aparecer mais alguém para nos extorquir euros?
Quinhentos metros depois os nossos piores receios tornaram-se reais. Ainda havia mais um controlo. Paramos, o agente (fardado) dirigiu-se a nós e mandou-nos ir à casa ali ao lado com o livrete e uma folha de circulação que nos tinha sido entregue na duana. Decidi apresentar apenas a folha para ele por o carimbo. Coloquei o livrete no bolso, pois a data iria denunciar a idade do veículo e quando chegou a minha vez entreguei apenas a folha, que rapidamente ficou vermelha com as porradas do carimbo.
Depois disto sim, estava resolvida mais uma fronteira! Gastámos apenas mais 20€ que o mínimo que prevíamos gastar, seguimos viagem sem escolta nenhuma, e às 3 da tarde estávamos em St. Luis a almoçar.
A estrada de Rosso para St. Louis está um quanto esburacada. Pela primeira vez na viagem apanhamos uma estrada em mau estado, que nos recorda que entrámos na verdadeira África. Os primeiros quilómetros são feitos por entre terrenos cultivado e irrigados com água do rio que dá nome ao país. Conforme nos afastamos, a erva seca e depois a terra vermelha tomam conta da paisagem, com os ebondeiros no horizonte. Como se não bastasse o mau estado das estradas, também a policia nos quer dar as boas vindas, uma vez por causa duma luz de STOP que não funciona, outra porque não temos o “obrigatório” extintor.
A ponte metálica que dá acesso à ilha de St. Louis faz antever grandeza da cidade que nos espera, e a sua ferrugem, o decaimento que a antiga capital das colónias francesas em África sofreu nos últimos anos. Ainda assim, é fácil imaginar a beleza que esta teria no tempo em que os jardins e passeios estavam melhor arranjados e a cores das fachadas dos edifícios um pouco menos gastas pelos imperdoáveis anos.
St. Louis, Senegal, 2006 – foto de pentrexyl
Enquanto almoçamos um prato de arroz com peixe seco, somos várias vezes interrompidos por vendedores de “souvenirs”, e tentados a ir visitar a ruas estreitas e geométricas da cidade a bordo de uma das charretes que estão constantemente a passar. Infelizmente desta vez não nos podemos sujeitar a apaixonarmos-nos por esta cidade. É hora de seguir viagem!
Mas não para todos. A Sílvia, que nos acompanhava desde Marrocos fica por aqui. Regressará depois a Portugal novamente por estrada. É na tristeza da despedida, e no desejo dum reencontro que nos fazemos novamente à estrada. Mais uma vez a policia não nos deixa esquecer que estamos no Senegal. Logo à saída da cidade somos pela terceira vez neste dia “multados“, agora por excesso de velocidade! Queremos sair o mais rápido possível deste país! O Senegal é um país lindíssimo, mas não é definitivamente o local para um branco conduzir o seu carro.
Até Louga a estrada assemelha-se a uma estrada nacional portuguesa. Uma vez que pretendemos contornar a Gambia, cortamos aí para o interior do Senegal. Pretendia-mos seguir o caminho mais curto, por Touba e depois Kaffrine em direcção a Tambacounda, mas pouco depois de Louga não demos por um cruzamento onde devia-mos cortar e seguimos em frente, até Dahra, por uma estrada que mais parecia um queijo suíço. Com isto tudo fizemos mais 50km que o previsto e chegámos a Touba já de noite.
Mesquita de Touba (foto de enzopost)
Enchemos o depósito e pedimos umas indicações. Pena ser de noite e não podermos apreciar devidamente a grandiosa mesquita de Touba, a mais importante do Senegal. Alguns quilómetros à frente, entre Mbaké e Kaffrine somos mandados parar por um policia solitário que nos multa, novamente por causa da falta de extintor. Uma das multas mais caricatas que tivemos nesta viagem. (ler mais sobre a multa).
As estradas continuam péssimas. Como se não bastassem os buracos, à entrada das localidades há as essenciais lombas que parecem paredes, e com o escuro só as vemos quando estamos mesmo em cima delas. Se não fossem estas lombas imagino que o numero de atropelos seria ainda mais trágico: pelo meio da escuridão há sempre crianças que brincam despreocupadas pelo meio da estrada. Pensávamos que a estrada a partir de Kaffrine estivesse num estado razoável, afinal é a estrada que liga Dakar a Tambacounda e daí à Guiné Conakri e ao Mali.
Pelo contrário! Esta revela-se o nosso pior pesadelo. Os constantes buracos lá deixam de quando em vez engatar a terceira velocidade, e muito raramente a quarta. Fazemos alguns quilometro em segunda, a ultrapassar camiões, muitos deles encostados à berma com um garrafão de óleo e umas braças de arbustos a servir de triângulo, enquanto o mecânico-condutor tenta substituir um pneu, ou espera por ajuda quando o caso é mais grave.
O cansaço de conduzir desde as 7 da manhã e suportar os arreliantes policias e guardas fronteiriços leva-me a descobrir como é conduzir a dormir. Numa estrada europeia pode ser mortal. Aqui não: vou a 20, 30km/h, e os buracos não permitem que os olhos se fechem por mais de 2 segundos. Ainda hoje não olhamos para o relógio Imagino que seja 1 ou 2 da manhã. Já exaustos decidimos encostar e dormir algumas horas, no meio da mais absoluta escuridão, onde nem a luz da estrelas consegue transpor o pó levantado pelos camiões.
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