Coreia do Norte: Guerra e Paz no último dia de viagem
Pelo fresco da manhã do último dia desta viagem na Coreia do Norte rumamos a Sul. Do meio do neblina matinal irrompe uma peculiar construção cor de rosa que engole a estrada. Às 7h45 da manhã, uma hora passada desde que saímos do hotel Yanggakdo em Pyongyang estamos a tomar o pequeno almoço na única área de serviço até Kaesong.
Na quase meia hora que por ali estamos não terão passado mais de 5 viaturas. A estrada, quase sempre em recta, tem imensos túneis e pontes, sempre com duas faixas. Ao contrário daquelas que encontramos para o leste do país, esta é asfaltada e não em lajes de betão. Os amortecedores do autocarro agradecem.
Com o aproximar de Kaesong, começam a surgir os checkpoints militares. Pela primeira vez na viagem somos expressamente avisados para não fotografar nem ter as câmaras à vista nas janelas do autocarro. Algo normal aqui, como em qualquer outra zona com presença de militares no Mundo.
Passamos ao lado de Kaesong, onde era previsto pernoitarmos, não fosse o tufão que impediu a nossa viagem no dia anterior. Poucos quilómetros à frente, vemos a autoestrada desvanecer-se em duas estreitas faixas que culminam num portão. Somos o primeiro grupo do dia a chegar.
A Guerra
Um robusto aro de betão emoldura o acesso ao interior da zona desmilitarizada (DMZ). Acedemos a uma pequeno recinto onde o nosso autocarro pára.
Aqui já não se brinca aos soldados, figuras omnipresentes por todo o país. As fardas lisas dão lugar a padrões camuflados, as calças vincadas a roupa de combate sobre corpos robustos, as boinas a capacetes, os olhares indiferentes a óculos escuros e caras de poucos amigos. Chegámos à guerra.
Um loja de recordações vende, entre outros, obras-primas de propaganda pintada à mão. Compro dois belos quadros. Uns 15 minutos depois de nós começam a chegar mais grupos. Depois de alguma espera somos todos chamados a uma sala onde um militar nos explica um pouco da história e dos locais que vamos visitar na DMZ.
Enquanto os autocarros avançam pelo portão seguinte somos alinhados 2 a 2 para depois seguirmos a pé. Os metros de estrada que se seguem são ladeados de um muro sobre o qual se equilibram enormes blocos de betão que em caso de invasão das forças inimigas caiem, constituindo um bloqueio a qualquer viatura. Imagino por isso que os terrenos na lateral sejam minados…
A Paz
Seguimos no autocarro acompanhados por um militar. Estou excitadíssimo por estar aqui e acabo por prestar pouca atenção às explicações que vão sendo dadas. Paramos junto à porta do Museu da Paz Norte Coreano. Este é composto por vários edifícios dos quais se destacam os dois que visitamos.
O primeiro, onde ocorreram as conversações entre as duas partes, é o mais pequeno. Quem entra à frente consegue um lugar sentado enquanto ouve a explicação. É o meu caso.
O outro edifício, maior, tem as suas paredes forradas com fotografias e textos sobre o conflito e, ao centro as mesas onde foi assinado o armistício em 1953. Nas mesas estão as bandeiras e os livros assinados, dentro de redomas de vidro. Pedaços de história. Tudo está tal como nas fotografias a preto e branco de há 66 anos. A paz precária mantém-se até hoje, já que nenhum tratado de paz foi entretanto assinado. As duas partes continuam oficialmente em guerra.
Sempre a correr, somos chamados para uma foto de grupo com um militar e voltamos aos autocarros. É então que recebemos a pior notícia: ainda com a desculpa do tufão (vá-se lá saber se é mesmo por isso), hoje nenhum grupo é autorizado a ir até à linha de fronteira em Panmunjom.
Adoro fronteiras, especialmente aquelas em que há mesmo algo de físico a demarca-las. Esta é uma delas. Queria mesmo ir até àquelas casinhas azuis onde ainda há poucas semanas o presidente Trump saltou a linha para este lado. Estamos a apenas 1000m deste palco da história, mas hoje, não há espectáculo.
Voltamos a Norte para Kaesong com um sentimento de frustração de quem foi impedido de ir até um dos pontos altos da viagem.
Kaesong
Antiga capital do reino da Coreia, a cidade antiga de Kaesong foi poupada aos bombardeamentos norte americanos durante a guerra da Coreia por, à data, ser controlada pelas forças sul Coreanas. É assim das poucas cidades norte coreanas com um centro histórico antigo e não uma reconstrução com poucas décadas. Em 2013 foi inscrita na lista de Património da Humanidade pela UNESCO.
Visitamos uma zona transformada em museu, completamente restaurada, ocupada nos primórdios por uma universidade. É mais um dos raros locais onde não há propaganda. Toda a envolvência do local é muito bonita, com belos jardins, borboletas multicoloridas e edifícios ancestrais.
À porta há uma pequena loja de recordações especializada na venda de postais e de selos comemorativos. A filatelia está muito viva na Coreia do Norte e são emitidos com regularidade selos comemorativos. Compro o selo comemorativo do recente encontro de Kim Jung-Un com Donald Trump mesmo ali ao lado e, alguns selos para enviar postais para casa. (Recebi-os passado 6 semanas).
Uma almoço de rei
Estando nós na antiga capital do reino, o almoço que nos é servido é o digno de um rei, segundo a tradição coreana. Conforme o estatuto da pessoa, maior número de pratos diferentes deveria ter a refeição. O máximo, para o rei, eram 11. Os pratos, ou taças neste caso, são pequenos. O que conta é o número.
Como opção a ementa inclui um prato absolutamente impensável na cozinha ocidental, mas algo normal no norte da China e Coreia: cão, nesta caso servido em sopa. Diz a lenda coreana que quem comer a sopa de cão no Verão, não terá frio no Inverno. Veremos.
Para consumir tal dose de calorias, depois da almoço subimos à colina onde para além das estátuas dos grandes líderes, existem um miradouro com vista para a cidade antiga. Claro que o que todos queríamos mesmo era caminhar naquelas ruelas de terra batida que conseguimos vislumbrar por entre os telhados de cerâmica negra. Não é possível.
Descemos de volta ao autocarro. Pelo caminho cruzamos com pessoas que sobem e descem a colina para vir prestar homenagem ao presidente desta república que celebra hoje o seu 71º aniversário. Nós seguimos para a capital, Pyongyang onde também nos iremos juntar Às celebrações e assistir a maior espectáculo do Mundo.
A reunificação
Depois de uma manhã às portas da guerra, reentramos na capital sobre símbolo do desejo de uma paz efectiva: o Arco da Reunificação ou, como é oficialmente denominado: Monumento das Três Cartas para a Reunificação Nacional. Nele vemos duas mulheres (representando as duas Coreias) unidas sobre a Autoestrada da Reunificação, como é conhecida esta via que liga a Pyongyang à Zona Desmilitarizada. O discurso da reunificação das Coreias é omnipresente, mas claramente utópico: nenhuma das partes está disposta a ceder nos seus princípios.
- Categorias:
- Blog