Décimo Primeiro: Espantos – 2º Gazela
” (…) Foi assim que vivi sempre sozinho, sem ninguém com quem falar a sério, até que há seis anos, quando tive uma avaria em pleno deserto do Sahara. Estava com um problema no motor. E como não levava mecânico nem passageiros, preparei-me para tentar consertar sozinho o avião. O caso parecia bastante complicado, e, sobretudo, era uma questão de vida ou de morte: a água quase não me chagava para oito dias.
À noite, deitei-me na areia e adormeci, a mil e uma milhas de terra habitada, mais isolado do que um naufrago agarrado a uma jangada no meio do mar. Imagine-se então a minha surpresa ao ser acordado de madrugada por uma voz muito fininha, (…)Esfreguei os olhos. Tornei a olhar. E vi um menino perfeitamente espantoso a medir-me de alto a baixo com um ar muito sério. (…)
Mirei aquela aparição de olhos completamente arregalados. Não se esqueçam de que eu me encontrava a mais de mil e uma milhas de qualquer sítio habitado. Mas o meu rapazinho não parecia nem perdido nem morto de cansaço nem morto de medo. Não tinha aspecto de ser uma criança abandonada a mil e uma milhas de qualquer sítio habitado (…) “
A história que se segue, relata o acontecimento mais espantoso de toda esta viagem. Qualquer semelhança com a história que transcrevi em cima é pura coincidência. Ora vejam:
Foi assim que nos fizemos à estrada, os três, Eu, o meu tio Jorge, e o nosso dentista Raul, sem sabermos falar muito bem francês, mas com muita vontade de chegar à Guiné. Problemas mecânicos o nosso avião não deu, mas parecia-nos bastante complicado passar aquelas diabólicas fronteiras sem falar francês, e portanto decidi desfraldar umas bandeiras Portuguesas nos vidros, para que se algum português mais distraído passasse por nós sem reparar na matrícula visse as cores da pátria e parasse.
Na última noite em Marrocos, perdão, Sahara Ocidental, deitei-me na areia a ver as estrelas. De manhã, acordámos, muito cedo, mesmo a tempo de ver um dos mais belos nasceres do sol que vi até hoje, e sem sequer lavar os olhos, fizemo-nos novamente à estrada. Daí a pouco mais de trezentos e um quilómetros estaríamos a entrar na Mauritânia.
E eis que chegámos à última estação de serviço do Sahara Ocidental, que fica a mais de mil e uma milhas de qualquer sítio habitado.
Fomos atestar o depósito de gasolina Super a pouco mais de 0,60€ o litro, e, imagine-se então a nossa surpresa quando vimos aproximar-se um Mercedes, com matrícula francesa, onde viajava para além do proprietário e de outra passageira uma rapariga que quando viu que éramos Portugueses (não sei se pelas bandeiras se pela matricula), entrou em completa euforia, e que assim que o carro parou ela saiu e gritou alto e em bom som: “-Bom dia!!”. Foi o espanto completo.
Depois de uma rápida apresentação, lá ficamos a saber que ela se chama Sílvia, vive em Vila Real, já tinha estado na Guiné em 2002 e até tem a impressão de se lá ter encontrado com o Jorge, e este ano decidiu vir por aí abaixo, para não passar o Natal no frio, ia até St. Louis e depois regressava para cima novamente por estrada. E mais importante que tudo naquele momento é que sabia falar francês, pelo menos um pouco mais do que eu (mas isso também não é difícil).
Fui à casa de banho, esfregar os olhos e ali estava ela, perfeitamente espantosa a tomar o pequeno-almoço enquanto com o seu ar muito simpático explicava aos franceses que a partir dali ia connosco.
Mirei aquela aparição com os olhos completamente arregalados. Não se esqueçam de que eu me encontrava a mais de mil e um quilómetros de Portugal, e não é todos os dias que estamos no meio do desconhecido e prestes a ser repatriado por não falar Francês e aparece alguém assim entre nós.
Passadas poucas horas já nem nos lembrávamos que quando saímos de Portugal eramos só três. A partir dalí e até St. Louis no Senegal, o “nós” a que me refiro nos restantes posts não são apenas os 3, são 4 (quatro).
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