Goa: à descoberta do nosso património
Eis então que o sonho se realizou! Risquei da minha lista de locais a visitar aquele que, a longa distância de todos os outros, ocupava o primeiríssimo posto.
Fui a Goa, à Goa Velha, à “Roma do Oriente”, à igreja do Bom Jesus, ao túmulo do apóstolo do oriente São Francisco Xavier, às ruas tão portuguesas do bairro das Fontainhas em Pangim, ao que resta nestas terras do empreendimento iniciado pelos portugueses há 5 séculos. Jantei num restaurante onde haviam pratos com nomes como “pork vindalho” ou “sopa grossa” escritos assim mesmo. Falei o nosso português com velhos que ainda o não esqueceram e jovens que o querem aprender. Descobri este património que não é dos portugueses nem do indianos: é de toda a Humanidade!
Aterrei em Bombaim 2 dias antes de rumar a Goa. Embora preferisse ter feito a viagem de comboio, optei antes da partida por comprar um voo interno, já que reservar bilhetes de comboio fora da Índia não é tarefa fácil e tinha medo de ficar demasiado tempo em Bombaim à espera de um lugar.
Voei com a Jet Airwais, uma companhia de baixo custo do grupo da Emirates, que opera várias rotas domésticas na Índia. Adorei o serviço deles. Em pouco mais de uma hora lá estava a aterrar no aeroporto de Dabolim.
Felizmente nos aeroportos da Índia só podem entrar os passageiros e por isso são super calmos. Como de costume, lá existe o guichet dos táxis pré-pagos: diz-se para onde se quer ir, escolhe-se se se quer táxi com ar condicionado ou não e paga-se a tarifa justa. Depois é só apanhar um táxi no exterior. Neste caso, do aeroporto para Pangim, sem A/C, paguei 690 Rupias.
Como de costume o taxista fala pouco inglês e não conhece hotéis nem ruas.
A viagem de táxi revela logo uma Índia bem diferente daquela onde tinha estado nos últimos dois dias: os edifícios não ultrapassam os três ou quatro andares, têm telhados em telha de barro, e a sua densidade não sufoca a natureza e as pessoas. Só o trânsito continua anárquico, com a agravante de que aqui são os veículos de duas rodas que dominam.
Os cartazes a anunciar lojas de bebidas alcoólicas sucedem-se. Nomes como Vasco da Gama, Ilha de São Jacinto e apelidos portugueses começam a surgir.
As ruas portuguesas de Pangim
Em Pangim tudo isto se concentra. Eu que já levava a lição minimamente bem estudada, sabia que o hotel para onde ia ficava no centro e lá lhe consegui pedir para me deixar junto à igreja principal de Pangim. Depois, com a ajuda do Google Maps fiz o resto do percurso a pé.
As ruas de Pangim, especialmente no bairro das Fontainhas, transpiram Portugalidade. As paredes, a portas, as placas das ruas, as telhas de barro, os beirados à portuguesa. Algumas caras deixam bem claro um traço genético que vem do outro lado do Mundo. A língua de Camões essa, é provavelmente a maior marca que deixámos e está em todo o lado: nos letreiros, no sobrenomes, nas conversas que por vezes se escutam numa esquina.
Dormir em Pangim
Goa é um popular destino de férias mesmo para os indianos. Um pouco à semelhança do que acontece com o Algarve aqui em Portugal. Na linha da costa junto às praias concentram-se milhares de hotéis, bares, restaurantes, discotecas e tudo o mais.
Sendo o propósito da minha viagem mais cultural do que boémio, optei por escolher um alojamento bem no centro do antigo bairro português das Fontainhas, na cidade de Pangim.
A hospedaria Abrigo de Botelho, instalada num antigo edifício da época colonial, com as suas grandes varandas foi a minha escolha. O simpático proprietário, o Sr. Roy tornou a estadia ainda mais especial com as suas dicas e dois dedos de conversa em português.
Há, claro está, opções de alojamento mais baratas, como em toda a Índia mas, o Abrigo de Botelho faz-nos sentir em casa, mesmo numa terra distante.
Veja aqui mais informações sobre este hotel em Goa.
Igrejas e conventos de Goa Velha
Embora tendo chegado a Pangim já ao inicio da tarde de Sábado, a verdade é que depois de um duche no hotel não consegui esperar para o dia seguinte para ir até Goa Velha.
Importa se calhar explicar, para quem não sabe, que Goa não é uma cidade mas sim um estado. A capital desse estado é Pangim, ou Panaji, anteriormente chamada de Nova Goa. Foi aqui a última capital da Índia portuguesa, depois do abandono de Goa Velha, uns 10 quilómetros para o interior, no século XVIII. Tal aconteceu, não só devido às várias epidemias que assolaram a cidade, como também ao assoreamento do rio Mandovi que deixou de possibilitar a chegada dos navios, cada vez maiores.
São vários os autocarros que saem por hora da gare rodoviária de Pangim com destino a Goa Velha. A viagem dura uns 20 minutos e custa 10 Rupias. Na verdade fiquei com a ideia que até custava 12, mas como nem eu nem eles tínhamos trocos, ficou-me sempre por 10.
Não dá para transmitir a alegria que senti ao chegar aqui. Nem fotos nem palavras conseguem descrever o sentimento da realização dos grandes sonhos de uma vida.
Pelo meio de muita gente sempre a entrar e sair, lá fui à basílica do Bom Jesus com o seu altar em talha dourada onde se destaca a enorme estátua de Santo Inácio de Loyola, fundador dos Jesuítas e, do lado direito, o túmulo do Apóstolo do Oriente, São Francisco Xavier cujo corpo podemos ver pelo vidro da arca tumular que encima o belíssimo mausoléu.
Goa Velha é assim algo de fenomenal. Custa a compreender o porquê de num espaço tão reduzido existirem tantas igrejas. Cai-lhe bem o apelido de “Roma do Oriente” a este que foi durante séculos o centro da evangelização de toda a Ásia. Daqui partiram missionários para lugares tão distantes como a China, o Japão, o Sudeste Asiático e até o Tibete.
Nesta primeira tarde pela Goa Velha tive ainda tempo de passar pela Sé Catedral dedicada a Santa Catarina. Esta é a maior igreja de Goa. Daqui desci ao arco dos Vice-Reis, uma espécie de porta comemorativa na rua que dá acesso ao cais. Para terminar o dia passei pela igreja de São Caetano, rodeada de belos jardins e com uma arquitectura inspirada na basílica de São Pedro em Roma.
O segundo dia em Goa Velha
Optei por voltar a Goa Velha apenas na Segunda-feira, como o Sr. Roy da hospedaria me aconselhou. Aproveitei assim o Domingo para ir até à praia, evitando a confusão que se gera ao fim de semana.
Comecei por subir até ao museu de arte sacra que está instalado no convento de Santa Mónica. Alegrou-me ver que aqui, como noutras igrejas, decorrem obras de restauro que em breve tornarão estes locais ainda mais aprazíveis.
A entrada no museu custa 50 Rupias, sendo que para tirar fotografias se têm de pagar mais 100. Dos objectos expostos, que na generalidade pouco diferem do que se pode encontrar em qualquer outro museu de arte sacra na Europa, para mim destacaram-se dois. Um foi uma imagem de Nossa Senhora esculpida em marfim, com fortes influências das imagens das deusas hindus, certamente esculpida por um artista local. O outro, um “kit portátil” que os missionários levavam para dizer a missa durante as suas viagens de evangelização.
Nesta zona mais alta de Goa Velha ficam ainda a igreja de Nossa Senhora do Rosário, com alguns traços Manuelinos na sua arquitectura e, as impressionantes ruínas da igreja e convento de Santo Agostinho.
Construída no final do século XVII, a igreja viria a ruir no século XIX, depois de abandonada, mantendo-se apenas a fachada até 1936. Resta o pedaço de torre que hoje testemunha a sua grandeza. Em 2006 o complexo que se encontrava ao abandono foi alvo de escavações e obras de conservação que permitem ao visitante ter uma ideia de como outrora era o edifício.
De volta ao centro, entro na igreja de São Francisco. Esta tem o mais belo interior de todas as igrejas de Goa, com ricas talhas douradas e quadros que retratam a vida do santo.
Junto a esta fica o museu de arqueologia. A entrada custa 10 Rupias e não se podem tirar fotos no interior. Para além de várias esculturas recolhidas de templos Hindus no estado de Goa, o que se destaca aqui são as colossais estátuas de Afonso de Albuquerque e de Luís de Camões que até 1961 se encontrava lá fora no jardim.
O dia termina com uma longa subida até à igreja da Senhora do Monte. De lá consegue-se uma das melhores vistas sobre Goa, com as torres e cúpulas igrejas das brancas igrejas a pairarem sobre um mar verdejante de palmeiras.
Sou recebido por dois jovens europeus voluntários. Encontram-se por ali a cuidar da igreja que foi recentemente restaurada pela Fundação Oriente na sequência de um incêndio que a deixou parcialmente destruída.
As praias de Goa e o Forte da Aguada
No segundo dia em Goa, Domingo, após a ida à missa em português de que falarei mais à frente, decidi ir até à praia. Ali perto o Sr. Roy tinha-me recomendado Candolim que fica a uns 12 quilómetros de Pangim e há frequentes autocarros directos.
Eu não sou grande fã de praia, mas a verdade é que o forte calor indiano convidava a um mergulho. É claro que a existência de um forte português, que vinha indicada no mapa, chamou-me a atenção. Ao chegar a Candolim apanhei de imediato outro autocarro por mais 2,5 quilómetros até Sinquerim.
Aí, os taxistas queriam 300 Rupias para uma viagem ida e volta até ao forte, esperando lá meia hora. Como o mapa que me tinham dado no hotel indicava um caminho à beira mar até ao forte, decidi almoçar e depois seguir a pé.
O Forte da Aguada domina toda a península a norte da foz do rio Mandovi, que dá acesso marítimo a Velha Goa. Esta península encontrava-se rodeada de muralha e baluartes mesmo junto ao mar, terminando na praia de Sinquerim com um pontão que entra pelo mar.
O trilho fez-me lembrar a costa da Consolação, a sul de Peniche onde antes costumava passar férias. O grande problema foi que os baluartes iam-se sucedendo, mas o forte nunca mais aparecia. A água não era muita e o sol a bater no pescoço acabou por resultar num belo escaldão.
Cheguei por fim a um ponto onde a muralha tinha desabado e tinha de passar por dentro de água. Depois disto estava já junto ao forte da baixa Aguada. Este funciona actualmente como prisão, onde se diz estarem uma grande quantidade de estrangeiros punidos pelo uso de drogas. A partir daqui foi sempre a subir pela floresta até que finalmente lá estava o forte.
Num estado de conservação memorável, o forte da Aguada era uma peça chave para a navegação. O seu nome vem do facto deste possuir uma enorme cisterna, onde era armazenada água para o abastecimento das naus da carreira da Índia. A torre circular funcionava como farol. Hoje existe um farol novo nas imediações, que se pode visitar, embora eu não o tenha feito.
Para facilitar a compreensão do espaço, nos respiradouros da cisterna encontram-se vários painéis informativos sobre os vários fortes portugueses que controlavam a costa de Goa.
Como tinha vindo a pé, acabei por ter de regressar da mesma forma, já que os poucos táxis ali estacionados esperavam os passageiros que entretanto visitavam o forte.
De regresso a Candolim, como ainda era cedo dirigi-me à praia. Fui parado por uma placa que anunciava a Barbearia Casa Portuguesa. O meu cabelo comprido já começada a incomodar com o vento e o calor tropical que se fazia sentir. Era a hora! Apesar do nome do estabelecimento, o barbeiro não falava português, mas fez um bom serviço de tosquia. No final colocou-me na pior das situações: não fez preço. Acabei por lhe dar 300 Rupias, um valor bem acima do praticado por aqui.
Ainda fui a tempo de dar um mergulho no mar Arábico. Não fiquei fascinado com as praias de Goa. Areia pouco limpa, água mais castanha que azul e quente, demasiado quente. Esperava refrescar um pouco, mas parece-me que a água ainda estava mais quente do que o ar. Regressei a Pangim num dos últimos autocarros, apinhado de gente.
Descobrir mais
Enquanto preparava esta viagem tropecei num outro blog, onde li que aos Domingos havia uma missa rezada em português, na igreja de Nossa Senhora da Imaculada Conceição em Pangim, pelas 10 da manhã.
A essa hora lá estava eu. Via ali uma oportunidade única de presenciar um último testemunho do nosso legado linguístico e, de interagir com ele. Quando cheguei estava a terminar uma missa em inglês. Seguiu-se uma procissão com o Santíssimo pela escadaria em frente à igreja.
Muitos dos rostos não escondiam a sua herança genética e faziam lembrar caras bem portuguesas. As pessoas trajavam de forma festiva e, as bombinhas a estalar e os sinos a tocar, faziam lembrar as festas e romarias de Portugal.
Não foi preciso esperar muito para estabelecer os primeiros contactos na língua de Camões. Entre os presentes estava um jovem na casa dos 30 anos, de nome Zico Rodrigues, muito interessado em falar sobre a história de Goa, ora em português ora em inglês.
Surpreendentemente a assembleia era composta por gente dos 0 aos 90 anos, igualmente distribuída. Recém-nascidos, crianças, jovens, adultos e velhos, todos unidos pela mesma pátria: a língua portuguesa.
Para a terça-feira, o meu último dia em Goa, não tinha grandes planos. Iria andar por Pangim, talvez voltar à praia beber uma cerveja e preparar a mala para o dia seguinte. Saí de manhã e subi ao Altinho, a zona mais alta do bairro das Fontainhas, onde se encontram os edifícios governamentais e o Consulado Português.
Não sabia o que este dia me reservava até uma scooter parar junto a mim. Era o Zico, o rapaz que havia conhecido no Domingo no adro da igreja. Convidou-me para ir até casa dele conhecer o avô, convite que eu só podia aceitar.
No bairro de Montepio deparo-me com um cenário que me transporta para Portugal: à porta do apartamento o cão ladra ao desconhecido. Lá dentro há um altar com um Cristo Rei, o Sagrado Coração de Jesus e Maria, Santo António e, alguns santos com feições indianas.
No móvel há um galo de Barcelos, na televisão sintoniza-se a RTP internacional, em cima do sofá está um livro escolar de língua portuguesa.
O avô, Francisco Fernandes é cidadão português e já esteve algumas vezes em Portugal. Era policia antes da “libertação”. O neto repreende-o pelo uso dessa expressão: prefere chamar de “invasão” à tomada de Goa pelas tropas da União Indiana em 1961.
Rodrigues é um acérrimo defensor da ilegalidade desta acção à luz do direito internacional. Não se sente indiano. Sonha com uma Goa independente ou, no mínimo, autónoma em relação à Índia. O copo enche-se de cachaça de caju enquanto o Rodrigues puxa pela guitarra. A música, essa língua universal, junta aqui o português e o concani (ou canarim), língua falada na região, em palavras que me transportam para casa.
Depois de almoço saímos, agora de carro, em direcção ao interior. O Zico Rodrigues pretende mostrar-me alguns templos hindus e aproveitar para visitar familiares. A primeira paragem é no templo de Shri Mangesh, um dos mais importantes da região. Sinto aqui a minha falta de preparação para esta viagem ao nível da religião Hindu.
Como jovem político o Rodrigues pára para conversar com toda a gente. Agora que escrevo com alguma distância, e depois de ter visitado outras partes da Índia, surpreende-me o facto de ter sido o único indiano que conheci nesta viagem a incomodar-se com o lixo que há espalhado pelo chão. Mesmo ali em redor do templo.
Os familiares, amigos e conhecidos do Rodrigues são quase tantos como as árvores de caju, com o seu fruto extremamente sumarento e doce, do qual a nós só nos chega a castanha.
Com algumas paragens em fontes e casas de familiares perdidas na floresta, não tenho outra hipótese senão beber da água que brota da terra e comer, entre outras coisas, um delicioso arroz doce servido em folha de bananeira. Temo pelos meus intestinos. Felizmente, ainda seria preciso esperar mais uns dias para que um jantar em Deli me sentasse por horas na sanita.
O passeio terminou com chave de ouro no templo de Laxmi Narasimha em Veling. Ao contrário do anterior, este ficava no meio de uma floresta de palmeiras. Não havia ninguém para além de uma rapariga a correr, um guarda e, um instrumentista que chegou minutos depois de nós.
Assim, do imprevisto que foi todo este dia, surge um dos momentos mais maravilhosos desta viagem. O homem subiu à torre sobre o lago, abriu a janela e começou a tocar tambores. As ondas sonoras ecoavam por todo aquele anfiteatro apenas para nós e para uma ou outra mulher que ocasionalmente vinha buscar água à fonte que alimenta o lago.
Regressámos a Pangim já de noite. A minha mala para o dia seguinte estava por fazer e assim ia continuar. A prioridade era para já, encher a memória de recordações deste dia.
Seguimos para Dona Paula e Miramar, duas localidades ribeirinhas, onde terminaríamos a noite a jantar no Clube de Ténis Gaspar Dias, juntamente com o jovem Pereira, talvez o mais acérrimo defensor da independência de Goa que conheci.
No dia seguinte, pouco mais de duas horas de voo abririam-me a porta para uma outra Índia. A Índia do ar quente, sufocante e poluído, do caos urbano, do muito lixo no chão, dos milhões de humanos numa azáfama sem igual. A Índia de Deli, de Agra e de Jaipur. A incrível Índia.
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3 Comentários
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Obrigado Filipe. Acho que é uma zona que ias adorar!
Companheiro, hoje dei por mim a pensar que devia ir a Goa um dia destes e acabei por vir parar a este teu belo texto. Grande inspiração, obrigado. Houve momentos em que parecia estar a ver fotos de Portugal… 🙂