Huashan: subir, sobreviver e regressar
O monte Hua (Shan significa montanha) é uma das cinco grandes montanhas da China, local sagrada para o Taoismo. Mais do que a religião, o que leva até lá os visitantes são as bonitas paisagens e aquele que é muitas vezes apelidado de “o trilho mais perigoso do mundo”.
Huashan fica a cerca de 120 quilómetros para este de Xi’an, na província de Shaanxi. Visitei o local na minha primeira viagem a este país em Novembro de 2018.
De Xi’an a Hua Shan
Acordo em Xi’an pelas 5:30 da manhã. Quando saio do hotel em direcção à estação de metro já há bastante movimento nas ruas. Dirijo-me para a enorme estação de comboios de Xianbei, Xi’an Norte, onde param os comboios de alta velocidade.
Subo ao primeiro piso, onde fica a zona de espera e de check-in, descendo depois para as plataformas. Embora hajam outras formas de ir de Xi’an para Huashan, como o comboio normal ou os autocarros, escolhi utilizar o comboio de alta velocidade.
Está o pior smog que já apanhei nestes dias de viagem na China. Embora tape por completo a visibilidade, não me incomoda tanto assim a respiração. Creio que será mais fog do que smoke.
À saída da estação de Huashanbei, a visibilidade não vai além dos 30 metros. Os taxistas aproveitam-se da minha desorientação para me assediar, mas lá consigo localizar os autocarros.
Esta estação, sendo a de alta velocidade, fica um pouco afastada do centro da cidade, mas há um autocarro que faz gratuitamente a ligação até junto da entrada do parque. Na rotunda onde pára há painéis informativos a indicar onde apanhar o autocarro para o inicio do trilho pedonal que pretendo tomar. O autocarro dourado, de funcionamento eléctrico leva-me até lá. Inicio a subida às 09h00 da manhã.
Que comece a subida
Os últimos anos de excesso de trabalho demasiado sedentário deram cabo do pouco que restava da minha forma física. Nos primeiros metros perco logo de vista um pequeno grupo de jovens chineses, de aspecto pouco atlético, que iniciaram a subida quando eu.
Na bilheteira aproveito o WC para tirar alguma roupa, pois embora o ar esteja frio, o meu corpo já começa a estar bem quente.
O bilhete custa 160RMB (uns 20€). Há bastantes painéis com informação acerca dos trilhos, incluindo as distâncias, o número de degraus e o tempo médio que demora entre os vários pontos.
Vejo que até ao pico Norte são 6300m, 3772 degraus, aproximadamente 210 minutos. Vamos a isso!
Mesmo sem degraus nos primeiros quatro quilómetros, a subida é muito íngreme. Vou tirando roupa, que se vai acumulando pendurada na mochila. Há várias bancas que vendem comida, desde os noodles instantâneos a saladas frescas, assim como bebidas energéticas.
A acrescentar aos cinco quilos da minha mochila trago comigo alguns chocolates e snacks para a subida, assim como noodles para fazer se encontrar fontes de água a ferver.
O vale é profundo e o sol nunca bate no trilho. Cruzo-me com carregadores que levam às costas ou sobre os ombros pesadas cargas para abastecer os estabelecimentos que há pelo caminho. Para além das lojas, há mesmo um pequeno hotel mas que se encontra fechado, provavelmente por estarmos em época baixa.
Stairway to Heaven
Pelas 11 da manhã chego por fim ao inicio das escadas. Vou-me cruzando com alguns jovens que me ultrapassam e com outras pessoas que vêm a descer. É usual subir durante a noite para ver o nascer do Sol e descer depois pela manhã. Num pequeno templo cruzo-me com um jovem israelita que desce. É para ambos o primeiro encontro com não chineses nas montanhas de Huashan.
A partir daqui a cota eleva-se a uma velocidade vertiginosa. A temperatura essa baixa dos 0ºC. A inclinação é cada vez maior. O cansaço também.
O troço mais espectacular fica entalado entre duas rochas: as escadas do desfiladeiro de 100 pés. Aqui já se começam a revelar úteis as correntes de ferro que ladeiam os caminhos para auxiliar na subida e evitar as quedas. Tão admirável trilho faz por momentos esquecer o cansaço.
Daqui para cima há mais gente, mas o pico Norte parece nunca mais chegar. Por fim, pelas 13h30 chego. Uma pequena vitória, quatro horas e meia depois de começar a caminhada. Uma hora a mais do que o painel anunciava ao início.
Todos os picos de Huashan
Talvez tenha sido melhor não ter lido a totalidade do painel no inicio do trilho. É que até ao pico Sul, são mais 3000 degraus a partir daqui e essa informação podia ter sido desmotivadora.
Há um pico para cada um dos quatro pontos cardeais, sendo o pico Sul o mais alto, com 2154,9m. O pico Norte fica significativamente mais baixo que os restantes e até chegar à zona mais alta da montanha ainda é uma longa caminhada.
Começo a recear não chegar a tempo ao mais famoso trilho de Huashan: as pranchas de madeira. Na verdade não sei até que horas está aberto, nem se estará de todo, devido ao gelo e à neve.
A partir daqui tenho a companhia de muito mais visitantes, já que há teleférico até ao pico Norte e é aí que a maioria das pessoas inicia a sua visita. O meu objectivo é para já chegar ao hotel onde reservei um cama para passar esta noite.
Sim, há hotéis aqui em cima. As condições são básicas, mas há-os. O rapaz da recepção não fala nada de inglês e por isso usamos o telemóvel para comunicar. Fico num dormitório com 20 camas, que por enquanto estão todas livres.
Deixo a mochila e o casaco amarrados com o cadeado à cama e continuo a subida agora mais leve. Com a altitude há cada vez mais neve e na zona mais alta, entre os 3 picos, está mesmo tudo branco.
Há loucos troços de escadas verticais fechados devido ao gelo. É necessário caminhar com alguma cautela para evitar o gelo. Próximo do pico Este como umas salsichas e bebo um Red Bull chinês, enquanto aprecio um dos mais belos cenários da montanha: o pavilhão do xadrês.
Trata-se de uma pequena construção num pico não muito distante. Para lá chegar só por um sinuoso trilho onde é obrigatório utilizar equipamento de segurança para evitar as quedas. Infelizmente já não tenho tempo de lá ir, mas parto daqui com um novo ânimo. É que se este trilho está aberto, aquele onde quero ir também estará.
Caminhar no Céu
Tive pesadelos na noite anterior. Não me imaginei a cair, mas na minha mente pairavam imagens de gente a cair ou, pendurada por precários equipamentos de segurança.
As imagens deste trilho são sem dúvida assustadoras e nos vídeos que tinha visto os equipamentos de segurança não inspiravam confiança nenhuma.
Vinte minutos depois de chegar à fila, onde apenas estavam umas 15 pessoas, chega a minha vez. Por aqui já se encontram alguns turistas estrangeiros, uns 5 no total. O tempo de espera é enorme e nem estamos na época alta! Isto acontece porque o percurso não é circular e então é necessário esperar que as pessoas vão e regressem.
Antes do trilho todos assinam um documento, quiçá sobre o destino a dar aos seus restos mortais. Um funcionário coloca-nos o arnês de peito e inicia-se a descida pelos degraus de ferro, provavelmente a parte mais perigosa do trilho.
É notória a falta de à-vontade dos chineses com a montanha e com estes equipamentos. Vêm vestidos como se fossem passear ao shooping e têm dificuldade em movimentar os mosquetões ao longo da linha de vida.
A estabilidade e largura das tábuas transmite tranquilidade mas não deixa de impressionar pela altura.
No topo do Mundo
O Sol já se está a pôr quando saio do trilho, mas eu quero ainda chegar mais acima: ao topo do pico Sul, que fica já ali. Subo os últimos degraus até aos 2154,9m acima do nível do mar.
O cenário é dos mais belos que já vi até hoje. A merecida recompensa para todo o esforço deste longo dia. Os picos rochosos estendem-se pelo horizonte rasgando o smog que cobre o Mundo dos Homens. Aqui em cima é território divinal.
Com a luminosidade cada vez mais diminuta dirijo-me ainda para o pico Oeste. Atraiçoado pelo gelo escorrego nos degraus, mas sem gravidade. Continuo com mais cautela.
O pico Oeste até parece ser dos mais bonitos, mas já pouco se vê. A descida até ao hotel é feita já às escuras e quase sozinho. Só alguns funcionários do parque ainda andam por aqui.
Dormir em Huashan
Chego ao hotel pelas 18:30. Vou com a esperança de comer uma refeição quente, mas o restaurante está fechado, ao contrário de outros que encontrei pelo caminho. Há no entanto alguns jovens sentados numa mesa, completamente vidrados nos seus telemóveis. Não falam inglês, mas têm uma enorme taça de noodles à frente.
Não encontro nenhum funcionário do hotel, por isso vou ao quarto buscar os meus noodles instantâneos e sirvo-me de água na panela por detrás do balcão. Só depois de eu estar a comer chega um funcionário que serve noodles as outras pessoas que entretanto aparecem. Ainda parece que vem para ralhar comigo por me ter ido servir da água, mas como não fala inglês, desiste.
Aquecido por este delicioso manjar sento-me nas mesas de pedra da rua para escrever o meu diário. A temperatura está alguns graus abaixo de zero.
Os caminhos encontram-se todos iluminados, até porque há muita gente que sobe durante a noite. Pelo meio do smog vislumbram-se as luzes das cidades lá em baixo.
Nascer do Sol nas montanhas
Sem saco de cama nem aquecimento no quarto, resta-me vestir a minha roupa mais quente e enroscar-me no cobertor que é fornecido para aguentar a noite. O mesmo fazem os outros 4 ocupantes do quarto.
Acordo pelas 5:30 ainda não recuperado da coça do dia anterior. Pego no casaco e saio. Ainda está bem escuro mas há imensa gente a subir. O objectivo de todos é chegar ao pico Este a tempo do nascer do Sol, que está previsto para cerca das 6:30 da manhã.
A pequena multidão amontoa-se junto à grade que nos separa do precipício, olhando para Nascente. O céu vai-se pintando de tons de laranja e por fim, às 7:10 o astro rei revela-se perante todos os que o esperavam.
Findo o espectáculo celestial regresso ao hotel, como uns snacks que me restam, pego na mochila e sigo calmamente para baixo. Os meus joelhos queixam-se. Abusei deles. Abusei de mim.
Regresso ao Mundo dos Homens
É chegada a hora de me despedir da montanha. Compro um bilhete só de ida para o teleférico do pico Norte por 80RMB. Uma placa indica que em caso de filas, o tempo de espera a partir dali é de 2h30! Hoje e a esta hora não há ninguém, mas impressiona imaginar os dias em que a montanha está lotada.
A viagem é vertiginosa e vertical. Dá para ver o trilho que sobe por este lado, bem mais perigoso e vertical que aquele por onde subi. Talvez por isso esteja fechado nesta altura do ano.
Bebo um café escaldante e apanho o autocarro que me leva de regresso ao centro de visitantes de onde parti no dia anterior. O caminho não pode ser feito a pé e o bilhete custa 20RMB.
Volto ao smog. Tão intenso que tenho dificuldade em encontrar o caminho até à estrada para apanhar o autocarro para a estação. Daqui sigo em alta velocidade até Luoyang. É o regresso ao mundo dos Homens.
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