Muralha da China: do lado selvagem de Jiankou à recuperada Mutianyu
A visita à Grande Muralha é incontornável numa viagem à China já que esta é talvez a mais reconhecida obra do país. A sua extensão não é consensual, e se é ou não visível da Lua, poucos o terão experimentado.
Certo é que a muralha não é toda como vem nos postais: há partes nas montanhas e outras no deserto. Há troços majestosamente recuperados, outros em pobres ruínas. Se é óbvio que eu queria visitar uma dessas fotogénicas secções de cara lavada, também fiquei logo interessado quando me começou a surgir alguma informação de como visitar as partes em ruínas.
Foi no blog Mundo Indefinido que encontrei um excelente artigo sobre Como fazer a caminhada de Jiànkòu até Mùtiányù. A informação sobre os transportes para lá chegar está lá toda e foi só seguir este guia. É para isto que acredito que os blogs de viagens servem!
De Pequim a Jiankou
Autocarro até Huairou
Depois de um primeiro despertar pelas 3 da manhã, ainda afectado pelo jetlag, saio da cama às 5 e preparo-me para a muralha. Quando saio do hostel ainda é de noite e a previsão é de chuva. O Hutong NanLuoGuXiang está deserto e no metro ainda são poucos os passageiros.
Dirijo-me para o terminal rodoviário de Dongzhimen. É daqui que parte o autocarro 916 Expresso para a cidade de Huairou, nos arredores de Pequim. Vou seguindo o trajecto no maps.me, a aplicação de mapas e GPS que mais uso nesta viagem, já que funciona offline, ao contrario do Google Maps que só está disponível online na China.
Saio na última paragem: o terminal rodoviário de Huairou. Chove. Uma chuva fraca mas persistente. Sou de imediato abordado por um homem com alguns postais da muralha na mão que me pergunta se é para ali que eu vou. Digo-lhe que quero ir para Jiankou e não para Mutianyu, mostrando-lhe o nome escrito em chinês. Ele propõe levar-me lá por 150RMB. Nem regateio: quero partir. Atravessamos a rua e arrancamos na sua carrinha.
De táxi até à aldeia de Xizhazi Nanjili
Por atalhos atravessamos umas linhas de comboio, umas zonas industriais e já estamos fora da cidade. O céu está pesado e a visibilidade é pouca, não deixando perceber a grandiosidade da paisagem.
As estradas de quatro faixas rapidamente dão lugar a uma sinuosa via onde dois veículos têm dificuldade em se cruzar. Vai-se subindo pelo vale ladeado de estabelecimentos de restauração e diversões no que parece ser um refúgio da agitação citadina.
Os cartazes começam a anunciar a entrada na área protegia e a proibição de percorrer estes troços da grande muralha. No local onde segundo li deveria de se pagar uma taxa de entrada no parque, está um estaleiro de obras. Seguimos.
Em redor da aldeia há alguns estabelecimentos hoteleiros e restaurantes. Tudo muito simples, mas que pode ser uma solução para quem quiser começar mais cedo ou, percorrer mais zonas da muralha, embora para isso obrigue a subir e descer.
O meu condutor pensava que eu queria ir para uma aldeia mais distante, mas com a ajuda do GPS indico-lhe exactamente onde quero ficar. Despeço-me dele mesmo junto de um painel gigante que me relembra que vou fazer algo de ilegal. No horizonte já consigo avistar algumas torres da muralha.
A Subida
Afasto-me do motorista enquanto ele fuma um cigarro. Da aldeia aparece apenas uma mulher velha nas suas tarefas rurais. Quanto ao trilho que devo seguir tenho poucas dúvidas: não só por causa do GPS, mas também porque vêm muitos atletas a descer, alguns ao estilo trail running outros mais descontraídos. Imagino que venham lá de cima.
Depois destes encontros nos primeiro metros, sigo sozinho pelo arvoredo. Sempre a chover, sempre a subir. O trilho exige alguma cautela: o chão lamacento está coberto de folhas de Outono o que o torna extremamente escorregadio.
O silêncio só é ligeiramente quebrado pelo esvoaçar de enormes pássaros por entre as árvores ou pelo distante ladrar dos cães nas aldeias. A muralha essa, espreita sempre no topo da montanha e a sua imponência vai aumentando conforme vou subindo e percebendo a orografia em que ela assenta.
Ao fim de uma hora a subir chego por fim junto da torre. Um amontoado de pedras da própria muralha improvisa uma escada. Subo.
Caminhar no lado selvagem
Os meus olhos não querem acreditar naquilo que vêem. Que obra do outro Mundo. O cenário que se estende aos meus pés parece saído de um filme de fantasia. Do céu enublado saem nuvens que dançam em redor da muralha. Esta mais parece um dragão serpenteando pela montanha. Só por isto já valeu a pena vir à China.
Infelizmente a direcção que vou seguir é para o lado contrário, em direcção ao troço restaurado de Mutianyu. Parto desta torre com um enorme desejo de um dia voltar e percorrer ainda mais muralha. Fiquei apaixonado por esta obra.
Na verdade vou apenas percorrer um pequeno pedaço do troço de Jiankou, um dos mais cénicos da muralha. Para o percorrer todo é necessário mais do que um dia, em autonomia, acampando ao longo da muralha. Esta primeira torre seria um local perfeito para acampar, pois o chão no seu interior é liso. Há mesmo marcas de fogueiras por aqui e, muito lixo, infelizmente. Mesmo não estando oficialmente aberto, a verdade é que há muita gente a caminhar por aqui e há mesmo caixotes do lixo. Não parece é haver quem os despeje, pelo menos nesta altura do ano.
A vegetação sem folhas, dada a época do ano, domina grande parte da muralha, mas sem impedir a passagem. Vou-me cruzando com alguns chineses que passeiam por aqui. Tanto os há bem preparados para o terreno, como outros que vêm de sapatos e camisa, mesmo estando a chover.
O Chifre de Boi
Uma das passagens mais difíceis deste troço é o chamado “Chifre de Boi”, em que a muralha sobe até ao topo de um penhasco e desce depois vertiginosamente. Há um caminho alternativo para o evitar, já que especialmente a descida é altamente perigosa e completamente desaconselhada em dias de chuva. É claro que fui por lá.
Se ao início nem parecia nada de especial, os -45º de inclinação no final são realmente complicados. Originalmente esta zona teria degraus em pedra aderente, mas estes entretanto desapareceram e ficou apenas a segunda camada de uma pedra polida. A única hipótese de chegar lá baixo sem partir nenhum osso é agarrado à parede lateral, mas ainda assim há garantias. É necessário cautela pois a estabilidade da parede já não é a melhor e há pedras a soltarem-se…
A partir daqui é quase sempre a descer, mas mais suavemente. O estado da muralha melhora com o avançar dos metros assim como o número de pessoas com que me cruzo. Estou a chegar próximo da zona restaurada.
Por fim chego a um rudimentar portão de madeira. Uma placa diz que eu subi ao topo da muralha. Do outro lado alerta para que este é o último ponto onde posso obter água ou snacks para os próximos 10 quilómetros (isto para quem vem no sentido inverso ao meu). Dentro da torre parece viver alguém que aproveita para fazer negócio com os mais aventureiros que vêm até aqui.
Entrada em Mutianyu pela “porta do cavalo”
Salto o muro. É tão simples quanto isto entrar na secção restaurada de Mutianyu sem pagar. São muitos os que o saltam nos dois sentidos para subir mais um pouco. Não me orgulho particularmente de ter entrado sem pagar. Fá-lo-ia se aqui houvesse bilheteira, mas não há.
A chuva entretanto abrandou. Há imensa gente nesta última torre visitável, criando uma fila para descer a estreita escada para a torre. O cenário a partir daqui é bem mais fotogénico, não haja dúvida, mas não se compara à aventura que foram os meus primeiros quilómetros na muralha.
Percorro toda a a extensão da zona visitável, primeiro a descer, até ao local onde no passado havia uma porta (hoje fechada), depois a subir (e muito) até à última torre. Nesta a muralha bifurca e ao contrario daquela por onde entrei, aqui não há forma de passar para a zona não restaurada.
Para grande tristeza minha, o tobogã que desce da muralha até à estrada está fechado devido às condições climatéricas. Resta-me por isso descer a pé ou de teleférico. Escolho a primeira.
Regresso a Pequim
À saída ninguém me pergunta pelo bilhete. Daqui de onde parte o teleférico ainda são uns dois quilómetros até ao centro de visitantes. A viagem pode ser feita de autocarro, mas decido continuar a pé. Afinal é a descer.
Pelo caminho passo por imensos estabelecimentos hoteleiros estilo alojamento local, restaurantes e muitas obras. O centro de visitantes é um enorme centro comercial ao ar livre. Tomo um café e sigo para a rotunda.
Mesmo para aqui não é fácil vir (ou regressar) de transportes públicos e há muita gente que utiliza o táxi a partir de Pequim. À saída da rotunda há placas a indicar as paragens dos autocarros. Uma delas indica o 867, que iria directo para Pequim às 16:00, mas a essa hora pára o H23. Um italiano que está acompanhado de uma rapariga chinesa diz-me que devo ir com eles naquele. É o que faço.
Vamos até Huairou, saímos logo à entrada da cidade numa zona onde param muitos autocarros. Atravessando a rua está logo ali a paragem do 916, que passa poucos minutos depois, com destino à capital do império que outrora esta muralha protegeu.
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