28 Outubro 2024

De Kerbala a Kufa

Depois de 3 dias em Baghdad e uma tarde de aventuras a visitar as ruínas da Babilónia, decido que o próximo destino será Kerbala. Um pouco desviada dos locais arqueológicos, principal razão que me trouxe ao Iraque, Kerbala entra no meu roteiro como uma opção. Se houver tempo.

Desde logo vítima de trocadilhos para os falantes de português (Quer bala?), Kerbala é nome sonante nos media normalmente pelas piores razões. Sendo um dos principais santuários Xiitas, são vários os atentados ali ocorridos nos últimos anos.

Algo que me impressionou enquanto preparava esta viagem foi ver que a maioria dos conflitos religiosos que conhecemos no Iraque se devem não à luta dos Islão contra outras religiões, mas sim a quezílias internas entre Sunitas e Xiitas. Como que uma Irlanda do Médio Oriente. Já eu cristão, de um país cristão que no passado lutou contra o Islão, sinto-me bem recebido em todo o Iraque e iria ter mais provas disso no dia seguinte.

iraquianos dentro de autocarro com sol a por
Cruzando o Eufrates ao pôr do Sol

À saída da Babilónia improvisa-se um táxi numa velha carrinha que me leva até à vizinha cidade de Al-Hillah por 5k IQD e me deixa no cruzamento de onde parte miniautocarros para Kerbala. O dia já vai avançado. Rapidamente todos os lugares são ocupados e partimos, com o sol a pôr-se durante a viagem. São 12k IQD por passageiro para completar os cerca de 50km de viagem. Chegamos já de noite.

Pelo caminho pesquiso no Booking hotéis na cidade. Vejo que há alguns com muito bom aspecto e um preço justo. Não faço reserva pois percebo que não terei problema em arranjar alojamento. Nesta viagem só reservei previamente hotel para as três primeiras noites em Baghadad. A partir daí, sem um roteiro rígido, irei ao sabor do vento.

Kerbala

O transporte deixa-me mesmo à entrada da cidade. À minha frente estende-se uma grande avenida pedonal coberta para proteger os peregrinos do sol escaldante dos dias. Dos imensos Tuk-tuk lá consigo explicar a um disponível para onde quero ir. Como ele só fala e lê árabe uso o google maps para encontrar um lugar perto do hotel que ele consegue identificar. Pede-me 3k IQD e partimos. Há imensas ruas fechadas ao trânsito e muitas outras com acesso condicionado. Os militares são omnipresentes o que revela bem as preocupações de segurança em redor dos santuários. Acabo por fazer o resto do caminho a pé.

Alojo-me no King Hotel, digno do nome, a uns 500 metros dos santuários. No lobby está um grupo de peregrinos. As mulheres, tal como por toda a cidade, usam xador ou nikab negro. Muitos dos homens usam turbante como estamos habituados a ver aos clérigos do Irão. Eu, visto a minha camisa de manga comprida e saio para visitar os santuários.

multidão junto a mesquita
Noites loucas de Kerbala

Como de costume nas viagens optei por trazer apenas calças, apesar do calor que sabia que ia apanhar. Não é normal usar calções por aqui e em alguns locais pode mesmo ser mal visto. T-shirt, mesmo nestes locais ultraconservadores é tranquilo. Ainda assim, gosto de me misturar.

Em redor dos santuários há imensas obras: quer de ampliação dos mesmos, quer da construção de uma linha de metro. Ao aproximar-me dos santuários a normal revista de segurança, muito facilitada já que nos bolsos só trago o trio inseparável: passaporte, telemóvel e carteira. Entro assim nos locais mais sagrados do  islão xiita.

interior de mesquita xiita
Tectos de fazer doer o pescoço

Uma enorme fé move todos os que se deslocam até aqui. Unidos por uma praça onde se amontoam peregrinos estão os túmulos do Imam Hussain (filho de Ali – primo do Profeta Maomé) e do seu meio irmão Abbas Ibn Ali, ambos mortos aqui, na batalha de Kerbala no ano 680.

Dentro das mesquitas os tectos apresentam um intrincado trabalho de espelhos que nos fazem sentir como que dentro de um diamante gigante. Ao centro, protegido por vidros verdes e uma grade de prata, está o respectivo túmulo. Em seu redor fervilham os crentes em gestos de fé e comoção. Eu, o infiel, passo com respeito mas não mais do que isso.

mausoléu dourado e tectos de cristal
O sagrado

Antes de regressar ao hotel caminho um pouco pelas ruas em redor repletas de lojas de artigos religiosos, de sumos de fruta e alguns restaurantes. Subo para o meu quarto feliz com a decisão de ter passado por aqui e de ter feito a visita pelo fresco da noite.

De Kerbala a Najaf, por entre mártires e mal-entendidos

Depois do pequeno almoço saio pelas 10h do hotel. O programa para este dia era simples: ir até Najaf, visitar, e seguir para Samawa. Mal sabia eu o que me esperava ao fim do dia.

A viagem começa com um erro digno do mais incauto dos principiantes. Sou abordado por um homem que se me diz ter um táxi e que me leva a Najaf por 25k IQD. Este seria o preço do táxi partilhado, por lugar. Aceito na mesma seguir viagem com ele. Presumo que se ele só está a dialogar comigo, o valor será esse para mim. Acontece que à chegada ele me pede os 25k por cada lugar (100k no total). No ecrã do Google Tradutor desfilam conversas azedas. Sou ameaçado de preces a Hussein contra mim. Acabamos por negociar pelos 75k IQD (aprox. 50€). Caso isolado, felizmente, em toda esta viagem. Fico sinceramente sem perceber se foi esquema ou ingenuidade dele, já que os preços são por norma apresentados por lugar e não para o carro todo e em nenhum outro momento tive qualquer stress do género.

Nos 70 quilómetros de estrada entre as duas cidades santas os postes estão engalanados com fotografias de soldados mortos na recente guerra contra o Estado Islâmico. É aliás, em Najaf, que a maioria deles tem agora a sua última morada. Já lá chegarei.

Najaf, o santuário de Ali

Cercado de ruelas estreitas onde só se entra após uma revista pela segurança, o santuário é em tudo semelhante aos de Kerbala. Segurança, grandiosidade, tectos com espelhos e, no centro, atrás dos vidros verdes e da grade de prata o túmulo de Ali ibne Abi Talibe, primo do profeta Maomé, primeiro Imã dos muçulmanos Xiitas.

pátio de mesquita com tapetes vermelhos e pessoas sentadas
Tranquilidade em redor da mesquita

Pelas suas portas é constante a entrada de grupos de homens carregando caixões aos ombros caixões. De madeira simples, cobertos com panos verdes, transportam no interior o corpo sem vida de um fiel Xiita. É aqui que todos desejam ser sepultados: no cemitério de Wadi-us-Salaam, o Vale da Paz, perto de Ali que os acompanhará ao Paraíso.

Wadi-us-Salaam – o maior cemitério do Mundo

Wadi-us-Salaam é assim o maior cemitério do Mundo: nos seus 6 quilómetros quadrados ultrapassa 6 milhões o número de corpos sepultados, com os conflitos das últimas décadas a muito contribuírem para o crescer destes números. Os caminhos de terra batida estendem-se labirinticamente por entre as campas. Caminho um pouco pela parte mais a sul. As fotografias de militares a quem a guerra ceifou a vida estão omnipresentes. Se viesse com mais tempo gostava de ter ficado um dia inteiro nesta cidade para me poder perder por estes caminhos.

maior cemitério do mundo
Morte a perder de vista

Não me vou embora sem no entanto subir ao melhor miradouro para Wadi-us-Salaam: um parque de estacionamento com vários pisos, convenientemente construído junto ao cemitério. Subo o caracol até ao último piso. À minha frente um mar de campas estende-se até ao horizonte. É algo de impressionante. Daqui, sob um Sol escaldante, apanho um táxi para a cidade vizinha de Kufa, hoje ligadas pela urbe.

tumulo de soldado iraquiano
Mártires de mais uma guerra

Kufa – a mais notável mesquita do Iraque

Tinham passado apenas 6 anos da morte do profeta Maomé quando em 638 foi construída a mesquita de Kufa, o que faz dela uma das mais antigas do Mundo. Foi também aqui que, segunda a tradição xiita, Noé construiu a famosa arca e que as águas começaram a subir. Em 661 seria aqui morto Ali ibn Abi Talib, sepultado em Najaf e, em 749 era ali proclamado o primeiro califa Abássida.

mulheres de negro a caminho de mesquita
Histórica

Cheguei com algum receio de ter de voltar para trás, pois tinha lido que não era permitida a entrada a infiéis. Caminho pelo pátio que ladeia as ruínas do antigo palácio Abássida e rapidamente vejo o quão enganado estou. Como estou com a minha mochila, sei que a tenho de deixar em algum local entes de entrar. Os guardas que fazem a revista, assim que digo que sou de Portugal fazem a habitual festa por ser do país do Cristiano, dão-me as boas vindas e levam-me ao guichet para deixar a mochila guardada. Os iraquianos voltam a não desiludir. É possível que tenham havido restrições, assim como haviam até há poucos meses para visitar certas cidades, mas tudo isso acabou. Felizmente.

A mesquita é mais simples do que as que visitei anteriormente. Lá dentro não há tanto glamour e por fora, as suas paredes de pedra nua dão-lhe um ar mais ancestral que as outras.

Apanho um táxi para a garagem de onde pretendo seguir de autocarro para Samawa. Usando o Google Tradutor o taxista pergunta-me: “Queres ir neste táxi para o Céu ou queres só ir apanhar o autocarro para o Céu?”. Mal imaginava eu o que o dia ainda me reservava. A história continua em O Anjo de Samawa