Fugir à polícia no Zimbabwe
Sou um cabeça no ar incorrigível, e só ainda não a perdi, porque anda agarrada ao pescoço. Contava que nestes dias de viagem por África a minha irmã colmatasse esta falha. No entanto, naquela manhã de Junho, o “fumo que troveja” que já se avistava pela janela do comboio à chegada a Vitoria Falls levou-nos e só quando chegámos ao hostel e começámos a abrir a mala demos pela falta do portátil.
Pela primeira vez estava a viajar com um computador, algo que nunca desejei, não só pelo desperdício de tempo que é ficar agarrado a ele quando se viaja, como pelo risco acrescido de perca ou roubo. Desta vez trazíamos o computador da minha irmã, que tinha estado o último ano a viver em Moçambique.
Peguei no bilhete do comboio e saí a correr para a estação. Estava certo que mais aqui ou mais ali o comboio havia de lá estar, já que só sairia ao final da tarde de volta a Bulawayo. Agradeci que nesta cidade, ao contrário do resto do país, os taxistas fossem uns melgas e apanhei o primeiro táxi que me apareceu.
Ao chegar à estação o comboio já não lá estava. Mas havia de estar perto, pensei. Comecei a perguntar a quem lá estava, até que encontrei a pessoa certa: o chefe de segurança da estação. Depois de lhe expor a situação, fomos até ao comboio, que estava mais atrás na linha.
Cá fora encontrava-se a tripulação toda a fazer um churrasco enquanto descansavam até ao final do dia. Entrei no compartimento com aquela esperança de haver um milagre e o computador estar ali, mas não. Virei tudo e não apareceu nada. Em conversa com o chefe chegámos à conclusão que só haviam duas possibilidades: ou um outro passageiro o tinha visto e levado, ou alguém da tripulação o tinha feito. Estes disseram-nos que no final da viagem passaram uma revista às carruagens e não encontraram nada.
Como diz o ditado, “a ocasião faz o ladrão” e eu tinha proporcionado a ocasião.
O chefe desdobrou-se em contactos durante quase uma hora, mas não se chegou a conclusão nenhuma. Ficou com os meus dados, a descrição do computador, o hotel em que eu estava e prometeu que ia fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para me ajudar. Agradeci, mas saí resignado à verdade mais que evidente: estava perdido.
Como de costume nestas coisas da tecnologia, a maior perda não era o valor monetário daquela máquina obsoleta, que nem sequer estava acompanhada do carregador, mas sim os bits e bytes nela armazenados.
De regresso ao hostel decidimos que iríamos seguir os nossos planos: reservámos uma viagem de helicóptero sobre as cascatas para as 13h30. Eram cerca das 12h00 quando fomos almoçar, mas antes passámos pelo posto da polícia, para apresentar o desaparecimento. É certo que não tínhamos grande esperança que pudessem fazer alguma coisa, mas ainda assim, uma declaração deles poderia talvez permitir-mos recuperar algum dinheiro pelo seguro de viagem.
É certo que a última coisa que um viajante quer é ir parar a uma esquadra de polícia no Zimbabwe, mas nós lá fomos, meter-nos na boca do leão. Fomos recebidos primeiro com surpresa por estarem ali dois brancos, depois com toda a atenção, mesmo não havendo suspeitos.
Enquanto a senhora que nos atendeu começou a redigir um extenso relatório, escrito à mão, com a descrição de todos os factos conforme eu fui relatando, pela janela podíamos observar os colegas a fazerem exercícios com as armas de fogo.
A letra bem desenhada da senhora estava a fazer os ponteiros do relógio andarem mais rápido e já eram 13h00 quando terminou por fim o relatório. Faltavam 30 minutos para a hora combinada para o voo de helicóptero. Quando pensávamos que estava tudo pronto eis que se aproximam dois senhores com umas malas e a senhora nos diz: “Agora vamos ao comboio!”. Perguntei-lhe para quê, ao que me respondeu “Para recolher impressões digitais”. Tentei demovê-la argumentando que já tinha estado muita gente na cabina e não se iria encontrar nada conclusivo. Haveria mesmo necessidade? Ela respondeu: “São os procedimentos…”
Expliquei a nossa situação, que para além do computador arriscávamos-mos a perder os 280USD que tínhamos pago para o helicóptero. Eles caminhavam cada vez mais devagar. Eram 13h20 quando chegámos à estação. O comboio estava agora ainda mais à frente. Sem hipótese para grandes conversas dissemos: “Ok, desistimos da queixa. O computador está perdido e está, por isso nós vamos para o nosso voo!” E começámos a correr em direcção ao hostel. Quem olhava para nós interrogava-se do porquê dois brancos iam a fugir à polícia. Na verdade não fugíamos: corríamos para um sonho.
O chamado “voo dos anjos”, como é chamado, foi divinal, mas sobre isso falo na página das cataratas Vitória.
Quando regressámos ao hostel, o senhor da recepção, que já sabia da história do computador disse-nos que tinha lá estado um homem à nossa procura, com uma pasta preta, mas que nos queria entregar pessoalmente, pelo que iria voltar.
Ficámos estupefactos. Ao que parece os anjos tinham-nos acompanhado naquele voo.
Pouco depois ele chegou. Era o chefe da estação: tipo forte, de calções e t-shirt como sempre e com a sua voz autoritária mas ao mesmo tempo atenciosa. Tinha recuperado o computador. Pediu-me para verificar se estava lá tudo e explicou-me como o conseguira.
Depois de eu me ir embora ameaçou toda a gente que seriam despedidos e presos se o computador não aparecesse. Entretanto, passou por lá a polícia depois da nossa queixa, o que os terá intimidado. À tarde ele voltou à nossa cabine e lá estava a mala do computador. Conclusão: foi algum dos funcionários do comboio que aproveitou a ocasião. Ele, como tinha prometido, fez tudo o que conseguiu. E conseguiu. Não tínhamos como agradecer, mas ele também não iria aceitar nada mais que um “obrigado”.
Com este desfecho, se me perguntarem se acho o Zimbabwe um país seguro para viajar, só posso dizer que sim. Pergunto-me às vezes: se fosse em Portugal o computador teria aparecido? A polícia teria ido comigo ao comboio ou tão pouco aceite a minha queixa, não havendo suspeitos? Espero nunca o vir a saber, porque a partir de agora vou verificar 2 ou 3 vezes se trago tudo comigo e de preferência deixar o portátil em casa.
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4 Comentários
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Que história hahah! Parabéns pelos seus relatos da África, estão me ajudando em uma viagem que farei por lá 🙂
É bom saber isso. Boa viagem Matheus 🙂 Zimbabué é um país fascinante!
Também nunca viajei com portátil, mas na minha Volta Mundo vou ter mesmo que levar, o resto da historia é surreal 🙂