4 Outubro 2024

O anjo de Samawa

Vivemos tempos excepcionais para viajar. Poder estar tranquilamente no Iraque é só um exemplo disso.

Outro é a facilidade de comunicação. Dizia Hemingway: “Apenas se podem seguir inteiramente os factos nos lugares onde se conhece a língua. Isto evidentemente que nos limita. Por isso é que eu nunca irei à Rússia. (…) Tudo o que se apanha são gestos e paisagem.” 1

Hoje não teria esse constrangimento: um qualquer smartphone na mão e uma ligação à Internet e, com mais o menos lapsos, falamos e compreendemos qualquer interlocutor. Embora em tempos tenha estudado o básico do árabe (ainda sou do tempo em que não haviam estas tecnologias) rendo-me ao seu fascínio.

Ao quarto dia pelo Iraque viajo entre as cidades sagradas de Kerbala, Najaf e Kufa. Frequentemente os taxistas perguntam-me para onde vou de seguida. Respondo que irei até Samawa. Em resposta, no ecrã do meu smartphone vejo traduzidas frases como:

“- O que vais fazer ao Paraíso?”

“- Depois de visitares Najaf posso-te levar ao Céu.”

Ao inicio estranho, mas rapidamente percebo que Samawa significa “Paraíso”. Estas palavras causam especial impacto aqui em Najaf, a cidade que é para os Xiitas um portal para o Paraíso. É aqui que se encontra o túmulo do Ali, primo do profeta Mohamed, tido por este ramo do Islão como legítimo sucessor do Profeta. É também nesta cidade que todos os Xiitas esperam ser sepultados. Daí que encontremos aqui o maior cemitério do Mundo, Wadi-As-Salaam, última morada para mais de 5 milhões de fiéis.

campas no cemitério de Najaf no Iraque
Cemitério Xiita de Najaf – o maior do mundo

Aproveito a proximidade para visitar ainda a grande mesquita de Kufa, uma das mais antigas do Mundo e também das mais sagradas para todos os ramos do Islão.  O meu receio inicial, por ter lido que em tempos não permitiam a entrada a infiéis, rapidamente se desvanece com uma calorosa recepção pelo pessoal da segurança, que faz uma grande festa e me ajuda a encontrar o local onde obrigatoriamente tenho de deixar a mochila.

De Kufa para o Paraíso

Já com a tarde bem avançada apanho um último táxi e peço que me leve até à garagem de onde partem os transportes para Samawa.

“- Vamos neste carro para o céu, ou apenas para o ônibus celestial?”

Recuso. Pretendo apanhar um miniautocarro ou um táxi partilhado (onde o custo é a dividir pelos 4 passageiros). Também não me apetece falecer hoje, algo que não seria de admirar dada a loucura vertiginosa com que se conduz nas estradas iraquianas. Após alguns minutos de espera para ocupar todos os lugares acabo por seguir num miniautocarro.

O sol já vai baixo quando saímos e consequentemente acabamos por chegar já de noite, depois de percorridos os 150km que separam as duas cidades.

Pelo caminho também alguns passageiros se interrogam “o que vou eu fazer ao Paraíso”. Outro pergunta-me:

“- Você tem alguém à sua espera no Céu? É que não há lá hotéis.” Outro diz que há um. Eu acho que há mais uns quantos, pelo menos a acreditar no que diz o Google Maps.

Porque quero ir para o Paraíso?

Mas afinal o que vou eu fazer a Samawa? – pergunta-se a esta hora o caro leitor.

Localizada nas margens do Eufrates, com uns 150.000 habitantes, Samawa é das cidades mais pequenas do Iraque.

Num país que esteve durante décadas fechado ao turismo e onde ainda hoje somos raros, é difícil para um iraquiano perceber por que razão alguém atravessa “meio Mundo” para ir até Samawa. Mas há uma razão de peso.

Quarenta quilómetros a leste da cidade ficam as ruínas de Uruk, uma das mais antigas cidades do Mundo, tida também como berço da escrita. Perdoo facilmente aos iraquianos por se “esquecerem” do seu grandioso passado longínquo: a qualquer um de nós teria sucedido o mesmo, se tivéssemos passado toda a nossa vida a lutar para sobreviver. Nós sim vivemos no “Samawa” e tantas vezes nos esquecemos.

Uruk era dos locais que queria mesmo visitar no Iraque mas, enquanto preparava a viagem ainda em casa, estava com alguma dificuldade em perceber como haveria de fazer para lá chegar. Acabei por contactar num grupo de Facebook com o Ali, um rapaz de Samawa que me iria ajudar a organizar um táxi para me levar até lá.

As trevas no Paraíso

Vou seguindo o percurso do miniautocarro pelo GPS, mais uma maravilha dos tempos modernos, e peço para sair junto ao hotel Qaser Al Gaader, o único digno do nome na cidade. Logo que me aproximo temo o pior: o estacionamento está cheio, há alguns carros que parecem decorados para um casamento. Lá dentro confirmo: lotação esgotada. Pergunto se há mais algum hotel na cidade. Indicam-me um outro “local hotel“. Cruzo a ponte sobre o Eufrates, que sem luz me parece o abismo e dirijo-me lá. Aqui, com grande antipatia, obtenho a mesma resposta. Começo a ficar preocupado.

passageiro no interior de miniautocarro
No miniautocarro a caminho do paraíso

Nas minhas viagens, já dormi nos locais mais incomuns: nas ruas, bancos de jardim, alpendres de igrejas… Mas aqui não me parece de todo o local para o fazer: a cidade apresenta-se suja, poeirenta, escura. Não transmite segurança. Ter chegado de noite não ajuda. 

Envio uma mensagem ao Ali, com quem tinha combinado encontrar-me no dia seguinte, a informar do meu infortúnio. Tenho esperança num convite que me salve, embora saiba que não é garantido.

Caminho por isso rua acima em busca dos outros hotéis que vinham indicados no Google Maps. Traído pela tecnologia, percebo que está mesmo tudo fechado. Numa agência de viagens confirmam-me também que os dois onde já bati são os únicos da cidade.

Faz-se luz no Paraíso

Compro uma bebida fresca e sento-me no passeio à espera de um milagre. Pouco mais posso fazer. Por fim o milagre chega. O Ali manda-me uma mensagem a dizer que me vem buscar e que posso ficar em casa dele. Afinal há anjos neste Paraíso.

Janto no restaurante que ele me sugere e onde minutos depois de terminada a refeição nos encontramos. Seguimos para casa dele. Pelo caminho, para além da normal agitação da noite “fresca” destes dias de verão iraquiano passamos por vários grupos que ao ritmo de tambores se preparam para a Ashura, uma das mais importantes festas do calendário Xiita.

O Ali explica-me que dentro de dias todos partirão em peregrinação a Kerbala, local da morte de Hussein Ibn Ali na batalha de Kerbala em 680dC. À memória vem-me de imediato o nosso 13 de Maio.

Ficamos a conversar até tarde. À baila vêm temas como a visão distorcida que o mundo ocidental tem do seu país, os muitos viajantes que ele já ajudou neste recanto do Iraque e, os meus planos para os próximos dias. E assim consigo mais uma ajuda dele: um contacto nos pântanos para alojamento e passeio de barco onde pretendia ir no dia seguinte.

Pelas 6h30 despeço-me do Ali. Deixa-me junto ao hotel onde todo o drama começou no dia anterior. A luz do dia veio trazer um pouco de paraíso a esta cidade. O Eufrates ali ao lado não é mais um abismo negro e revela agora o azul das suas águas. Entro no táxi e seguimos para Uruk.

de carro em estrada de terra batida com sol de frente
Faz-se luz a caminho de Uruk

P.S.: Poucas fotos há deste dia. Acabam por ser assim os dias especiais: registados na mente e nas palavras ao invés da câmara.


  1. Hemingway, Ernest – “As Verdes Colinas de África” – Edição «Livros do Brasil» Lisboa ↩︎