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Ardèche – aventura nas montanhas de França

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Ardèche – aventura nas montanhas de França

Espero por boleia debaixo dum calor abrasador. Não há sombras por perto. Hoje está a ser um dia difícil para apanhar boleias. Espero uns 20 minutos até que pára uma velhota. Conta-me que quando era mais nova também costumava viajar à boleia. A condução condiz com a idade: pára nas rotundas vazias, e quando vêm carros é que arranca. 🙂 Felizmente eu vou acompanhado do meu anjo da guarda, logo nada nos acontece! Deixa-me num cruzamento e arranca. Quando vou a ver, tinha-me esquecido da minha placa que dizia “Aubenas” no seu carro. Olho para trás e lá estava ela à minha espera para ma dar.

A partir daqui começa a melhor parte desta viagem. A minha placa diz Aubenas, mas só porque quero seguir nessa direcção. O carro que pára depois de 5 minutos vai para lá, mas eu pretendo sair antes. O rapaz é juiz e vai para Aubenas ter com a namorada. Espanta-se por eu conhecer o local onde quero sair, como se já lá estivesse estado antes, não ter mapa, nem querer consultar o dele.  Caminho agora para as montanhas.

Caminho para as montanhas de Ardèche

Às duas da tarde inicio a minha caminhada solitária pelas montanhas de Ardèche. Vou ter com uma amiga. Uma das melhores. Conheci-a em Marrocos em 2006 quando ia para a Guiné Bissau. Ela estava a caminho do Senegal. Escolheu agora viver aqui na paz das montanhas de Ardèche onde nasceu o seu filho faz agora 6 meses. Quando a avisei da minha visita ela deu-me indicações para ir até Aubenas e depois telefonar-lhe que me iria buscar de carro. Mas eu quero fazer uma surpresa. Por isso pesquisei no Google Earth como poderia lá chegar por outro caminho, e a rota foi esta. Pelas montanhas. Uns 20 quilómetros.

Por vezes penso que seria melhor ter tomado o caminho mais fácil e ter seguido para Aubenas. Penso que ainda vou ter de acabar por desistir e telefonar-lhe, por isso tento memorizar todos os pontos de referencia para poder identificar o local onde estou. Passam poucos carros, talvez um a cada 15 minutos, e só depois de uma hora é que há um que pára. O casal de jovens olha para mim com cara de espanto.

Não sabem onde fica Laboule, mas levam-me por uns quilómetros na direcção que eu pretendo. Desejam-me toda a sorte do mundo, como seu eu estivesse a empreender uma aventura sobre humana.  Paramos junto a um restaurante e vou lá para comprar uma garrafa de água. Atenciosamente, a rapariga enche-me uma garrafa de água da máquina fresca e oferece-ma.

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Estância de Sky nas montanhas de Ardèche num dia de Verão

Sigo a minha caminhada até que chego a um cruzamento. Está lá um carro parado a consultar um mapa. Não querendo arriscar tanto, peço-lhe para dar uma olhada. O mapa é pouco detalhado e sigo pela estrada que penso ser a correcta, continuando a fazer sinal a todos os carros que passam na esperança de arranjar uma boleia. Depois de passar por uns velhotes nudistas a tomarem banho no rio lá há um carro com dois jovens que pára. “Ne cest pas bonne route ici.”

Não era bem isto que eu queria ouvir neste momento. Estou do outro lado da montanha. Tenho três hipóteses: voltar atrás (uma das coisas que mais detesto fazer), continuar a descer e ir até Aubenas por este caminho (o que seria uma derrota para mim), ou, ir até à estância de sky ali perto e depois ir a pé. “Mas vais-te perder, porque o caminho não é fácil” avisam-me eles.  Ainda assim decido arriscar.

Eles fazem um desvio, levam-me até lá e dão-me um mapa e todas as indicações: “Segues por aquele caminho que vai contornar a montanha. Depois hás-de encontrar uns pastores com ovelhas, aos quais terás de perguntar qual o caminho certo para Valos e Laboule, pois há vários trilhos a descer para o outro lado, mas apenas um leva lá. Se tudo correr bem consegues chegar antes do anoitecer. Tout la chance du monde, mon ami!” Desta vez sim, sinto que me estou a meter numa grande aventura. 🙂

Nos trilhos das montanhas de Ardèche, França

Reconheço nestas alturas a existência duma força superior, a que uns chamam Sorte, outros Karma, outros Destino. Eu não me importo de lhe chamar Deus. Chame-se como se chamar, hoje há algo que me guia nestas montanhas e parece andar à minha frente a marcar o caminho que devo seguir, e a colocar as pessoas certas nele.

A beleza da paisagem das montanhas de Ardèche, França

Os primeiros quilómetros fazem-se pelo meio da floresta, até que por fim começo a entrar num descampado no planalto. A erva castanha que cobre o chão faz antever a presença dos pastores. Por fim começam a revelar-se, primeiro as ovelhas, depois os cães  e por fim os pastores! A sua idade ainda jovem e os chapéus de feltro que usam levam-me logo a ver que certamente até habitam em Valos. Dão-me as indicações o melhor que podem para o meu pouco francês. Devo caminhar à esquerda e depois cortar à direita no segundo poste de madeira.

O rebanho no top da montanha

A paisagem aqui é do outro mundo. Absoluta paz, num horizonte de montanhas azuis a perder de vista. Fico agradecido à Silvia por ter escolhido este local para viver. Se não fosse ela provavelmente nunca aqui viria, e depois um dia lá de cima ia olhar para a terra e pensar como tinha sido mau não ter vindo aqui.

montanhas azuis
Montanhas azuis estendem-se no horizonte
trilhos ardeche franca
Seguindo os trilhos pedonais nas montanhas de Ardèche, França

Sigo o trilho pedonal e ao segundo poste de marcação começo a descida. Estou radiante por ver aqui uma indicação para Laboule. Seguem-se umas duas horas sempre a descer. O caminho está bem marcado e aberto, pois é usado pelos pastores para a movimentação do gado. Depois de cruzar 3 ribeiros, a vegetação rasteira dá lugar às árvores e começam aqui e ali a surgir aldeias.

Avisto finalmente a aldeia

Por fim eis que o caminho entra numa povoação. É Laboule. Estou portanto perto. Peço umas indicações e faço os restantes dois quilómetros por estrada. Depois de duvidar nas primeiras horas do caminho, vejo agora o meu sonho a concretizar-se: vou conseguir fazer a surpresa. Logo que entro na aldeia pergunto a uma senhora que está à varanda onde vive a Silvia, a portuguesa. “Ultima casa à esquerda”. Perfeito. Quando chego reconheço logo o companheiro e o filho, e mais alguns residentes que ja tinha visto em fotos. Ela não fica completamente surpreendida com a minha surpresa. Já estava à espera que eu fizesse algo assim. Depois de por-mos a conversa em dia é hora de jantar, descansar e agradecer pelo dia de hoje. Estou em casa.

Às vezes dizem-me: “Há pessoas com sorte!” e eu respondo: “Não, a sorte ou o azar só depende nas nossas opções.” Mas hoje sou obrigado a reconhecer: “Sim, há pessoas com sorte. E eu sou uma delas!

Não é preciso despertador para acordar no campo. Como diz o ditado, deitar cedo e cedo erguer dá saúde e faz crescer.  Às 8 da manhã já estamos a começar o trabalho deste dia: recolha de braças duma planta medicinal que vai ser vendia a uma senhora que faz preparados medicinais.  Aos habituais residentes junto-me hoje eu, um casal que vem de fora para levar algumas para eles e a Dorite, uma alemã que está cá durante dois meses a participar no programa WWOOF.

O meu quarto em comunhão com a natureza

Cada dia o almoço é preparado por um dos residentes, e ao contrário dos maus comentários que fui ouvindo durante a manhã, à nossa espera está um delicioso almoço vegetariano. Desde que saí de Portugal que não comia uma refeição cozinhada saudável. Depois deste almoço dormimos a sesta. Aproveito depois para organizar as minhas coisas e actualizar o diário. Hoje já não há mais trabalho de campo. Apenas começamos a preparar lã para os chapéus de feltro que iremos fazer no Domingo.

Noite de festa na aldeia

À noite, vamos todos a uma festa reggae que há numa aldeia ali perto, festas estas que são frequentes por aqui, visto ser uma zona repleta de comunidades hippies, rurais, natureza e tal… todos se conhecem. Espanta-me a quantidade de crianças e bebés que vejo. Todas as mulheres têm um ou mais filhos com menos de 3 anos. Não há problemas de natalidade por aqui! Só hoje enquanto caminho até à minha cabana reparo no maravilhoso céu estrelado.

No dia seguinte, sábado, recuo no tempo para arrancar batatas com a ajuda dum cavalo. É o trabalho da manhã. Antes de almoço vou a casa dum vizinho, um dos poucos que tem Internet nesta aldeia. O meu objectivo é arranjar alojamento no couchsurfing para algumas das noites seguintes. Envio poucas mensagens, das quais espero mesmo receber alguma resposta, porque se não vou passar uma temporada a dormir ao relento.  Fico depois com a Camile, a padeira, a ajudar a enfornar o pão. Aqui na quinta há um forno enorme onde ela faz pão para vender e para o consumo de casa. O pão é das mais variadas formas e cores, com farinhas de várias misturas de cereais. No fim do almoço está pronto a desenfornar.  A Camile é das poucas pessoas aqui com quem consigo ter algumas conversas decentes, já que o meu francês é muito fraco, e ela fala fluentemente o Portunhol. Recuando no tempo, é ela a responsável por eu estar aqui já que conheceu a Sílvia em 2006 quando andava a dar a volta à Península Ibérica a cavalo.

À noite jantamos javali. Foi caçado na noite em que cheguei, pois andava a comer as hortas.  Enquanto não adormeço medito no futuro desta viagem. Tenho duas opções: ficar aqui mais uns dias, na segurança e conforto de ter sempre onde comer e dormir, ou parto já na segunda de manhã. Quando saí de Portugal apenas tinha planeado a minha viagem até aqui. Agora será sempre de improviso que vou viajar. Quero ir até ao Mónaco, quanto mais não seja para contabilizar o meu 18º país.  Vim nesta viagem com dois objectivos: visitar uma amiga e conhecer um pouco mais do mundo. O primeiro está cumprido. Agora o Mundo espera por mim.

Despedida da minha casa em Valos

Não sei se foi do javali, se doutra coisa qualquer que passei uma noite terrível, com má disposição. Só saí da cama às 10:30 num estado lastimoso e tomei um chá. Voltei para a cama até às 2:00. Tínhamos marcado de fazer os chapéus de feltro às 2:30, hora em que viria também uma senhora de fora para aprender. Subo até à casa e dão-me uns quantos preparados medicinais caseiros. 🙂  Está lá alguém que eu já conheço: um dos pastores das montanhas. Tal como eu tinha desconfiado logo que os vi, eles são daqui, e este desceu hoje do paraíso.

Estava sem imaginação para o chapéu, e com muito pouca vontade de fazer o que quer que fosse. Ainda assim acabou por saír bem bonito! Mesmo sendo quente, será a minha companhia nos restantes dias de viagem. Quando termina o trabalho já me sinto melhor. Quase pronto para amanhã entrar de vez na Provence.

De novo na estrada. Acordo já recuperado do mau dia de ontem e cheio de energia para continuar. Ainda não são 9 da manhã quando a Sílvia me deixa em Joyeuse, uma aldeia muito ao estilo medieval na base das montanhas. Depois de consultar a Internet tenho uma boa noticia: uma resposta positiva duma couchsurfer em Avignon, daqui a dois dias. Portanto esta noite será ao relento.

Aldeia de Joyeuse, França

Esta manhã quero chegar à Pont d’arc, um enorme arco natural de rocha escavado pela força das águas que hoje lhe passam por baixo. Espero entre 5 a 10 minutos por cada uma das 3 boleias que apanho até Vallon Pont d’Arc, onde chego ao som de Manu Chao com um casal de jovens. A vila, já bem ao estilo “provençale” está repleta de turistas e stands de aluguer de canoas, que já fazem antever o colorido espectáculo que vai pelo rio abaixo. Faço os restantes quilómetros a pé para testemunhar isso mesmo. O rio parece a segunda circular em hora de ponta. É colorido, mas demais. Aproveito para me refrescar nas águas do rio, com o devido cuidado para não ser “atropelado” por alguma canoa e para comer. Depois subo até à estrada, onde consigo fazer umas belas fotos do local.

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Vallon Pont d’Arc, Ardèche, França

Hoje estou a pedir boleia sem placas a dizer o destino. Desde que iniciei esta “segunda parte” da viagem que me sinto mais livre, e a ausência de placas com o destino é reflexo disso mesmo. Vou onde o destino me levar. Chegado ao local mais estratégico possível depois duma caminhada, estico o dedo e espero. Não muito, pois em pouco tempo parou um carro com um homem e o seu filho. São turistas, não sabem onde é Orange, mas vão na direcção certa. A paisagem é soberba. O rio de Ardèche escavou um escarpado pelos últimos 20km antes de entrar verdadeiramente na Provence. Deixam-me num ponto de miradouro mesmo à saída do vale. Consigo boleia para os restantes quilómetros numa das centenas de carrinhas que fazem o transporte das canoas de lá de baixo para Vallon Pont d’Arc.

Vale do rio Ardèche, França

Deixa-me junto à praia onde recolhe as canoas, mas acabo por não ir ao banho aqui. Dou uma visita à localidade e caminho até à rotunda à saída onde consigo boleia em direcção a Orange, o meu destino deste dia.

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1 COMENTÁRIO

  1. Será que conseguias ir à boleia até paris e ao mont st michel?
    Homem, és um verdadeiro viajante dos montes. Estou impressionada com as tuas tentativas, persistência e sentido de orientação.
    Muy bene!!

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